A influência dos portos na prostituição se estende para além do atracadouro. As estradas brasileiras, por onde passam 2 milhões de caminhões por dia, escondem às suas margens 1.820 pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes. Mapa da Polícia Rodoviária Federal e da Organização Internacional do Trabalho mostra esses locais na rota dos portos. A exposição diária à prostituição de beira de estrada põe uma parcela desses caminhoneiros como protagonistas da exploração sexual ao lado dos pais das crianças, de policiais corruptos e donos de bares ou boates. Há mais com que se preocupar.
Estudo da Confederação Nacional do Transporte (CNT) confirma a presença de crianças e adolescentes em metade dos locais de prostituição de beira de estrada. Quem confirma são os próprios caminhoneiros, numa amostra de 211 entrevistados em todas as regiões do país. Oito entre dez motoristas confirmam a prostituição adolescente, em especial de meninas. É comum caminhoneiro com prostituta na boleia, ou dando carona a crianças e adolescentes, apesar de proibido. Não raro, a viagem acaba em programa sexual. O caminhoneiro pode se tornar ator da exploração mesmo de forma involuntária, apenas por se prestar ao favor da carona.
O pior dos trabalhos
A exploração sexual comercial é a mercantilização e o abuso do corpo de crianças e adolescentes por exploradores, sejam eles na forma de redes local e global, pais/responsáveis ou consumidores de serviços sexuais pagos. Esse tipo de atividade se caracteriza como violação dos direitos da criança, tida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como uma das “piores formas de trabalho infantil”. Existem quatro formas de exploração sexual comercial: a pornografia, o turismo sexual, o tráfico para fins sexuais e a prostituição. Exploração sexual é crime previsto no artigo 244 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com pena de 4 a 10 anos de reclusão, além de multa.
Estudo realizado pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) explica que esse tipo de exploração tem caráter formal quando a criança é aliciada/agenciada por um terceiro, que não o cliente dos serviços. Esse intermediário se apropria do lucro obtido com os serviços sexuais oferecidos e há uma relação mais formal entre a criança e o cliente. Já no mercado informal não existe o intermediário, e a criança ou adolescente oferece seu serviço de forma direta ao cliente.
Há ainda uma variante mais flexível da exploração, de forma indireta por parte de quem busca ganhos eventuais com os serviços sexuais de crianças ou adolescentes. Assim, a relação do explorado com seu consumidor final tende a ser menos rígida, na qual o cliente seduz a vítima por meio de promessas de favores, mudança de status e ganhos materiais. O pagamento, muitas vezes, não se dá necessariamente em dinheiro, mas na forma de presentes.
Quem banca
É o cliente que sustenta as redes de aliciadores, traficantes e agenciadores. A conclusão parte de uma lógica simples: mesmo que uma criança se ofereça sexualmente em troca de algo, a exploração não se estabeleceria se não houvesse quem estivesse disposto a pagar pelo serviço. Explorador é quem, através de uma relação de desigualdade de poder, obtém algum lucro pelos serviços sexuais da criança. Cliente é quem tem contato sexual direto com a criança e paga pelos serviços oferecidos.
“Os clientes se relacionam com as crianças e adolescentes, sobretudo, a partir de uma lógica comercial e não pela presença de sintomas que podem ser considerados como um quadro de pedofilia”, salienta a análise comparativa feita pela UFRGS entre caminhoneiros clientes e não-clientes do comércio sexual infanto-juvenil.
A carona em caminhões é um meio de transporte recorrente em várias regiões do país. Muitas vezes, porém, esse tipo de favor camufla a prostituição de beira de estrada. Crianças e adolescentes passam de um caminhão para outro, indo procurar clientes em outras cidades e fazendo programas inclusive com os próprios caminhoneiros. Convém, no entanto, não culpar a todos por causa de uma minoria. A advertência parte de quem já passou pela experiência da generalização.
O verso do espelho
Durante 30 anos a socióloga Marlene Vaz, uma das mais respeitadas autoridades do país no estudo da violência sexual contra crianças e adolescentes, foi uma ferrenha crítica dos caminhoneiros e suas relações com as meninas. Até que, em 2004, num de seus vários estudos, desta vez no Sul da Bahia, ela se deparou com o outro lado do espelho: a condição humana do caminhoneiro. Algo mudou. “Descobri que de nada adiantaria apontar o crime, punir e informar ao caminhoneiro sobre os direitos sexuais das meninas se sua auto estima estivesse em baixa”, concluiu.
A luta de Marlene se deu meio por acaso. Foi em 1974, quando supervisionava uma pesquisa econômica para o IBGE em Candeias (BA), perto de uma refinaria de petróleo. Acabou fazendo um relatório sobre o tráfico de meninas, levadas para lá por caminhoneiros para serem exploradas sexualmente. Dali em diante, Marlene trocou as estatísticas para se dedicar a uma causa mais humana: o enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes.
Os estudos desta socióloga baiana ganharam projeção internacional e ela se tornou referência no assunto. Agora, um novo viés. “Depois de anos combatendo caminhoneiros e só enxergando um lado do espelho, a face sofrida de minhas meninas prostituídas, hoje vislumbro o outro lado do espelho e vejo a face dos caminhoneiros”, explica. Muitos programas hoje existentes são reflexo dessas três décadas de trabalho, desta vez, voltado não só para as vítimas, mas também para um público potencialmente explorador.
“Temos de arregaçar as mangas e fazer brilhar os dois lados do espelho, porque só assim teremos caminhoneiros protetores dos direitos das crianças e adolescentes e meninas cidadãs plenas de direitos”, diz. Para isso, ela avisa, é preciso que profissionais e empresas que lidam com os estradeiros mudem o conceito e a forma de tratá-los, demonstrem como eles são importantes na geração de renda do país, tudo para elevar sua auto estima pessoal e profissional. Também é preciso ouvi-los e não apenas comunicá-los sobre mudanças que dizem respeito a eles.
Portos e praias lideram incidência de aids
Repletas de marinheiros, caminhoneiros e turistas, cidades portuárias e praianas do Sul e Sudeste do Brasil lideram o ranking nacional de contaminação pelo vírus da aids. Porto Alegre (RS) abre a lista com a maior incidência da doença: 111 infectados para cada 100 mil moradores, 22 vezes acima da média do país. Camboriú (SC) surge em segundo com 91, Itajaí (SC) em quarto com 81, Balneário Camboriú (SC) em nono com 68 e Rio Grande (RS) em décimo primeiro com 60. São Vicente (SP) está em 35.ª lugar com 36 casos, Santos (SP) figura na 39.ª posição com 35 e Paranaguá (PR), a 97.ª colocada, tem 27 contaminados para cada 100 mil pessoas.
Devido ao grande fluxo de turistas, de navios e caminhões, cidades com praia ou porto costumam atrair mais profissionais do sexo. O marinheiro passa dias embarcado e ao descer à terra busca diversão, em geral no sexo. O mesmo acontece com muitos caminhoneiros depois de dias a fio na estrada. O turismo sexual é quase inevitável nas praias brasileiras. Os riscos, portanto, são maiores do que em outras regiões do país. Outro agravante é o fato de, nesses locais, haver uma forte comercialização de entorpecentes, o que aumenta o consumo de drogas injetáveis, comportamento de risco que facilita a proliferação do HIV.
Pelas regiões portuárias, em particular, circula gente de todo o mundo, o que torna ainda mais arriscado abrir mão do sexo seguro. Para pesquisadores da área, a mistura de um vírus tipicamente local com o de outro país pode gerar mutações que dificultem ainda mais a criação de uma vacina anti-HIV específica para aquele país. O Brasil, por exemplo, tinha o vírus tipo B no início da epidemia de aids, mas logo apareceu o tipo C. A grande circulação de pessoas nos portos teria sido determinante para a mutação. Uma responsabilidade a mais para as prostitutas e as redes que exploram sexualmente crianças e adolescentes nesses locais.
Santos já foi a “capital nacional da aids” no final dos anos 80, quando chegou a registrar mais de 100 casos por 100 mil habitantes. O município adotou um programa de prevenção e tratamento nos anos 90, considerado modelo mundial, e conseguiu reduzir essa taxa para 35,6. Há uma década, ônibus eram fretados exclusivamente para levar garotas de programa de São Paulo para Santos, sobretudo na alta temporada de verão. GAZETA DO POVO
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